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Origem

Caminhamos sobre terra e areia por entre pinheiros, eucaliptos e tojo, o corpo aquecendo lentamente na manhã fria deste domingo de agosto, enquanto respiramos o cheiro a mar, pinho e eucalipto, estranhas figuras vestidas de branco por entre o verde e o castanho. Calcamos o chão num passo cadenciado até nos encontrarmos numa clareira onde aguardamos em silêncio, corpo e espírito preparando-se para o que se segue. Ao menos hoje um dia mais fresco, em que os céus se conjuram para nos facilitar as horas que ali passaremos, num esforço físico perto do limite que se renova a cada obstáculo ultrapassado. Um desejo de que não acabe, que outro desafio se suceda e outro, e outro. O sol poupa-nos ao seu calor implacável e ausenta-se temporariamente, como por respeito à nossa determinação. A par dessa determinação alguma expectativa, talvez algum temor.

O seu olhar abarca-nos quando introduz o treino. Por momentos a nostalgia invade-o e deixa-se viajar através do tempo: “São quarenta anos de estudo, tendo como epicentro este espaço”, diz, sorrindo levemente, “quarenta anos de artes marciais, começando em França muito jovem ainda, de treinos que me trouxeram ao Kyokushin e me fizeram seguir esta via, voltando sempre ao meu dojo ao ar livre, aqui mesmo, neste lugar. Antes disso, menino ainda, brincava aqui com os meus amigos, “este era o nosso quintal, a nossa praia, o sítio onde iniciamos os primeiros desafios.”

Invade o meu espírito a imagem dos meninos selvagens e livres, correndo pela reserva, escorregando nas dunas e respirando o cheiro a mar, árvores e terra, pequenos Tarzans de 10 anos, índios de pele queimada pelo sol, cowboys montando cavalos imaginários, guerreiros de palmo e meio de coração rebelde, sedentos de aventuras e de liberdade. No seu espírito germinando a semente de dias vindouros.

A sua voz com um sotaque já nem brasileiro nem português, antes no caminho entre dois mundos, ecoa no silêncio expectante. De rostos voltados para ele ouvimos com atenção. Observando-nos recorda outros rostos que ali trouxe ao longo desses anos, adulto já e de espírito conquistado pela beleza das artes marciais. Voltará a Mindelo para outros momentos e outros voos, liderando gerações de novos guerreiros em treinos de intenso esforço físico e superação, cada um deles guardando em si os seus próprios motivos, as suas próprias razões, unidos pelo mesmo espírito que, ano após ano, o faz voltar aqui, ao lugar onde tudo começou.

O treino é bom, duro, doloroso, até. Subimos montes a correr até parecer que o coração nos rebenta no peito e mal temos tempo de recuperar o fôlego até a subida seguinte, até ao monte seguinte… Velhas mesas servem de apoio a flexões e abdominais, troncos de árvore e grandes pedras transformam-se em mascotes que temos de carregar para todo o lado. Gastamos a pele das mãos contra troncos de pinheiro e eucalipto em repetições sem fim no treino de endurecimento e, no kumite, reencontramos no companheiro o mesmo cansaço e a mesma alegria por estar ali… Finalmente a praia e as katas duna acima e ao contrário, para a esquerda, direita, em frente, sempre alguma novidade obrigando o nosso cérebro a reagir quando já nada parece fazer sentido. Já lá vão 3 horas de correria, esforço, dedicação e entrega total sem nos lembrarmos quando começou e sem sabermos quando terminará. Surgem os ataques e defesas de pernas no mar, intermináveis, levantando água salgada e areia e testando a nossa capacidade de resistência, não a física, mas sim a mental. Por fim seiza, dentro da água gelada do Oceano Atlântico cuja imensidão se estende entre Portugal e o Brasil.

A nossa determinação em continuar mesmo quando o corpo e a alma querem desistir sobrepõem-se à revolta interior contra a sua exigência de mais e melhor, quando só ele vê o que nós próprios não conseguimos ver… Mas ele sabe como se tempera o aço e através da sua experiência conduz os seus guerreiros, preparando-nos para a batalha individual que cada um de nós travará. Nós ainda não sabemos isto, nem sequer sabemos que somos guerreiros, mas sentimos a vontade enorme de seguir em frente que nos impele e fortalece, levando-nos até ao fim da manhã. Finalmente, a recompensa de sentirmos que fizemos mais do que pensávamos conseguir, sem sabermos ainda bem o que conseguimos e até onde poderemos chegar.

O sol aparece enfim para nos secar os doguis molhados pela água do mar. Voltamos para casa cansados, esfomeados, satisfeitos.

Outros treinos se seguirão melhores ou piores, quem sabe. Poucos terão o valor deste em que a consciência se apercebe, através do vislumbre da sua história e da sua alma, de que um círculo se completa.