02 – Relação entre Mestre e discípulo

Na relação que se estabelece entre o Mestre e o discípulo, um dos elementos fundamentais é o dever. É a dívida que alguém tem, está para lá da moral consciente, ou da dívida objectiva. A dedicação, a lealdade e a confiança inabalável que o discípulo (deshi) deverá ter na escola, que escolheu, na linhagem que segue, no mestre que o orienta, na via (dô) simplesmente.

Tal relação está muito para além daquela que se estabelece entre o treinador, nas variantes desportivas das artes marciais, nos desportos de combate, ou entre o instrutor ou o professor e o praticante.

É o sentido de obrigação e de dívida de honra que o discípulo tem para com o mestre.

Outro dos elementos determinantes é o esforço, a reflexão e a procura pessoal, paralela ao ensinamento do mestre. Só a compreensão do real sentido do que o mestre ensina, que está muito para além da mera execução técnica permite dar vida ao que a tradição transmite.

É nas vertentes desportivas que os praticantes ficam pela mera cópia da técnica. Ao contrário do que gostam de apregoar. As vertentes desportivas das artes marciais, essas sim, não evoluem, antes in-voluem. Pegam na técnica objectiva, aplicam-lhe as metodologias do treino física, seleccionam-se para as provas através das pregas de gordura, como fazem ilustres pseudo karatekas licenciados em educação física. E depois chamam-lhe evolução e aplicam-lhe pedagogia. Determinam quais são os momentos em que deve haver picos na condição física que devem coincidir com as datas das competições, pensa-se em modos de motivar os atletas e pronto… E estamos a evoluir, dizem.

É redutor, confrangedor e até mesmo enganador para aqueles que procuram um dojo, tarefa cada vez mais dificil, já que a oferta se limita cada vez mais ás academias.  Mas, também, para aqueles que durante alguns meses ou anos de treino nada entenderam, pois não se dedicaram a estudar, compreender os ensinamentos do mestre. Que nem sempre são técnicos. Sabemos que esses ensinamentos,  parecem muito distantes daquilo que esse tipo de aluno procura ou entende. Então ficam-se pelo que de mais superficial tem a arte (a parte externa (soto) e claro, acabam por abandonar, por se cansarem e desistir, mudar, procurando um caminho mais fácil. Renunciando assim á via do esforço, do trabalho, da dedicação. , mais árduo e dificil é verdade, mas também mais longo e mais seguro, levando ao sucesso, conhecimento e reconhecimento. Com certeza que o mestre não dará a oportunidade de conhecerem a profundidade dos seus conhecimentos, aqueles que muito cedo revelam as sua intenções negativas e ficarão sempre pelo contrário daquilo que procuram e num processo bem rápido acabarão por desistir. Pois esse  conhecimento, secreto do mestre, como podemos verificar, está sempre reservado para o discípulo, ou para aqueles que conseguiram superar, os vários obstáculos técnicos, físicos mas sobretudo psicológicos, filosóficos, colocados no caminho, através da humildade e confiança  depositada no mestre.

Numa relação deste tipo costuma haver, paralelamente, uma linhagem externa, hoje em dia geralmente virada para o desporto, e uma linhagem interna, oculta, que não é conhecida nem referida, em cada uma das escolas do Budô. O aluno externo (soto deshi) não é comparável com o discípulo interno, uchi deshi. Nestas linhagens muita vezes o discípulo é grosso modo, um discípulo que vive no dojo e perto do mestre. Em todo o caso pode significar tão só o discípulo mais próximo do mestre, mas sempre por oposição ao discípulo externo.

Para se perceber a relação entre o Mestre e o discípulo, devemos esclarecer as três etapas de progressão tradicional nas artes marciais, concebidas também como caminho interno do praticante. Significa grosso modo, imitar, divergir, separar.

Através destas etapas um mestre leva o seu discípulo desta etapa até à condição de mestre.

Num dôjô tradicional, todos os que alcançam a graduação de dan, devem imitar os movimentos do Mestre que os ensina. Nem sequer se pode questionar, apenas imitar. A aprendizagem nesta fase implica um simples exercício de observação. E a partir dessa observação gestual, o praticante reproduz e assimila-a. É a assimilação da forma exterior da técnica. Esta é a fase de proteger, observar uma regra. Nesta fase pretende-se proteger a forma para a conservar. É a etapa onde se assimila fisicamente as bases fundamentais da arte. É a parte em que se estuda e memoriza a gestualidade da forma. A reprodução do modelo limita-se a uma reprodução física. O discípulo observa a arte do mestre, reproduzindo-a. Procura a reprodução que convém à sua própria constituição física. É o estudo pela imitação, decalcada do modelo exterior.

Nesta fase o discípulo, ainda não o é de forma confirmada.

O treino implica sempre uma orientação segura, ministrada por um sensei, o que nasceu antes, palavra que também pode ser entendida como «aquele que indica a luz». Ora há sempre na relação Mestre-Discípulo uma transmissão para a luz. Contudo a relação com o Mestre possibilita que, cada um, no seu caminho, se projecte sobre si próprio descobrindo no seu interior o seu próprio mestre – o Eu. Ou seja «cada um tem em si o seu Mestre, cada um é gurude si próprio».

A essência da arte marcial está em nos dar as ferramentas para nos vermos melhor, mais fortes mas humildes e sinceros.

 

Cabeça baixa, sinônimo de respeito mas olhos levantados, ambição.

Shihan António Pereira 6º Dan